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É a escola a única instância educadora na sociedade contemporânea? É legítimo impor a toda a sociedade um único modelo educacional? Em pleno século XXI, é impossível pensar alternativas sérias ao modelo escolar? O que estão fazendo aqueles que tiveram a coragem de educar seus filhos fora da escola? Como pensar e implementar um processo sustentável de educação fora da escola?

Estas e muitas outras perguntas tem neste blog um espaço para construir respostas. Educar os filhos na sociedade do conhecimento é um desafio que supera de longe o modelo escolar...é urgente dedicar-nos coletivamente a consolidar essas alternativas.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Desescolarizar na era das Redes Sociais: releitura de Ivan Illich

A escola se tornou no final do século XX um consenso universal. Tanto o senso comum como o científico entendem a instituição escolar como o caminho necessário para realizar a educação de crianças, adolescentes e adultos. Parece impensável ou no mínimo absurdo pensar em educar uma criança fora dos parâmetros, práticas, ritmos e sentidos imprimidos pela escola. E no pior dos casos, se torna ilegal ou se entende como uma quebra dos direitos das crianças à educação.

Assim, como antes a religiosidade e a saúde, a educação terminou por sucumbir à lógica de um determinado discurso hegemônico. Até o advento das religiões monoteístas, o ser humano construía seu senso de transcendência de maneiras heterogeneas, ora coletivas, ora individuais. O contato com a divindade era vivido mais intimamente do que institucionalmente. A lógica do Deus único deslegitimou esse tipo de entendimento, uniformizou o modo de relação com a divindade e estabeleceu um caminho único para a transcendência. Um dos efeitos práticos desse processo foi a emergência de elementos esotéricos, de aspectos ocultos na doutrina e portanto da necessidade de especialistas capazes de interpretar, de entender e, sobre tudo, de validar o acesso, o uso e o entendimento dos conteúdos sagrados. Sua hegemonia perdura até os dias de hoje, mesmo que outros tipos de conhecimento trouxeram para a história novos rumos para os jogos de poder da humanidade.

Os cuidados do corpo, o luta do homem pela supervivência, especificamente, o que diz respeito aos cuidados com a saúde, também transitaram pelos mais diversos caminhos ao longo de milênios. Magos, gurus, xamãs, santos, espíritas, ervateiros, homeopatas, naturistas, e muitos outros, atenderam as necessidades de milhões de seres humanos nas mais diversas culturas e tradições. Em apenas um par de séculos, entre o século 18 e 19, a visão alopática da medicina, deslegitimou qualquer outra prática ou conhecimento médico. Durante o século XX a medicina que conhecemos hoje em dia, alcançou tal poder que deslocou para a marginalidade senão para a ilegalidade todas as práticas e saberes ancestrais e heterodoxos. A razão médica e farmacológica impera hoje no mundo todo. Desde antes de nascer até depois de morrer somos compelidos para dentro desse sistema de saúde. Na medida em que as novas tecnologia avançam, cresce também o grau de intervenção da medicina sobre o corpo humano. A tendência é ao banimento generalizado de qualquer prática que não siga o discurso hegemônico.

Até o inicio do século XX conviviam diversos modos de educar os filhos. A escola era um deles. Ainda se passariam várias décadas até a emergência da escola de massas na qual se estabeleceu a aplicação generalizada do mesmo modelo para todas as crianças em idade escolar. Os elementos que estruturam a escola como paradigma se tornaram universais ao longo do século. No final, cada vez mais países legislam no sentido da obrigatoriedade da educação escolarizada. O processo burocrático gerou fórmulas de continuidade que implicam a necessidade de cursar dentro do mesmo sistema desde ensino fundamental até o pós doutorado. Fora isso, todo saber é desvalorizado. A única maneira de obter legitimidade a respeito do saber possuído é a certificação oferecida pelas instituições.

Hoje, dizer que é possível educar uma criança fora da escola parece tão grave quanto dizer que é possível ter religiosidade fora de uma religião ou obter saúde sem o recurso da medicina oficial. É um sacrilégio. Um pecado. Um estupidez ou um delito. Em qualquer caso parece irracional. Mas é?

O único que é objetivamente verdadeiro é que, se você não cursa regularmente uma escola, não terá no final um documento oficial que certifique que você acumulou um determinado número de horas aula e que alcançou determinadas qualificações nas provas obrigatórias aplicadas pela instituição. O resultado objetivo é, por tanto, apenas burocrático e em nada reflete a pericia epistemológica do sujeito cujo nome aparece nos documentos. Por tanto, todo o sistema se fundamenta apenas em uma crença: a de que obtido o certificado de conclusão de curso, o sujeito, obteve perícia epistemológica. Assim, deveríamos ter, por tanto, tantos cientistas quantos formados nas universidades. Porém, a realidade é bem diferente. É fácil demonstrar objetivamente que existe uma diferença numérica entre quantos obtêm certificado e quantos de fato obtêm conhecimento. Um exemplo claro disso é a prova da OAB. Os resultados demonstram que apenas um percentual pequeno de graduados em direito está apto para exercer a profissão. O que aconteceria se fizessem o mesmo com os médicos? Simples, provavelmente teríamos menos do 8% dos médicos que se formam.

O sistema escolar se demonstra falho na consecução do que se propõe. Nem consegue estabelecer uma ponte entre os estudantes e o mundo do conhecimento, nem prepara essas crianças para a sociedade. No final do segundo grau elas são em sua grande maioria apenas o que hoje se entende como analfabetas funcionais. Se olharmos para o contexto histórico em que nos encontramos, a chamada sociedade do conhecimento, tal desempenho resulta completamente frustrante e certamente anacrônico.

Como a escola consegue tais resultados? Primeiro, ela enquanto instituição, demanda uma quantidade incrível de energia e recursos. Entre maior seja a instituição, entre mais estudantes ela receba, entre mais professores ela tenha, maiores serão as demandas do processo de manutenção e gestão da mesma. Assim que a instituição se instala e começa a crescer ela, por tanto, se torna o centro do processo. O estudante, suas necessidades, seu processo de aprendizagem, suas dificuldades, seus anseios e interesses, não são adquirem relevância efetiva, apenas discursiva. Finalmente o estudante se torna um conjunto de dados, uma estatística, um resultado quantificado. Se ele não for efetivamente problemático, passará fantasmagoricamente pela escola.

Em segundo lugar, está o problema da quantidade de estudantes em relação com a quantidade de professores. Aparentemente a maior número de estudantes, maior eficiência da escola. Se entende que ela é receptiva e aberta, democrática. Mas o que ocorre efetivamente é que o processo de diálogo entre professor-estudante, inerente à relação pedagógica, é anulado pelas dificuldades de comunicação que emergem numa situação como a que se estabelece numa sala de aula lotada de estudantes. Na realidade o que ocorre é que a maior número de estudantes, maior o número de interferências na relação pedagógica. O efeito primário é o inevitável distanciamento do professor a respeito da realidade efetiva de cada estudante. Se estabelece um hiato perverso entre o que ocorre no íntimo do professor e o que ocorre no íntimo de cada estudante. Assim, a comunicação inexiste, pelo menos com a maioria. A energia do professor se focalizará irremediavelmente naqueles, ou no pior dos casos, naquele, estudante que, aparentemente, está “conectado”, “atento”, “interessado”. O resto se torna uma massa cinzenta de desconhecidos e desinteressantes, quando não problemáticos, adolescentes. Nessa situação, a relação pedagógica centrada em questões epistemológicas é substituída sistematicamente por uma relação disciplinar, centrada em questões morais e de poder. A partir daí o jogo que se estabelece é no sentido de saber quem manda em sala de aula e quem será capaz de controlar a situação. O professor é munido de diversos expedientes que lhe permitem manter o controle. Já a desejada participação dos estudantes é substituída por jogos de identificação entre os estudantes que terminam por inibir as posturas individuais. O interesse por aprender se dilui diante a necessidade de passar inadvertidos. Deveríamos em troca, favorecer o contato pessoal entre professor e estudante. Favorecer a construção de um tipo de relação desburocratizada em que o nexo fundamental seja o compartilhamento do aprender do estudante.

O terceiro elemento consiste na questão da qualidade. Como contratar professores efetivamente qualificados é muito caro. Porém, o sistema escolar, sublima essa questão a partir de um dispositivo quantitativo: aumenta o número de disciplinas, aumentam-se os conteúdos e aumenta-se o número de horas na escola. Entende-se que o melhor é ter uma grade com 12 ou 14 disciplinas, das quais o conteúdo é extensivo o que obriga a estar mais horas em sala de aula. Daí emerge uma dinâmica, também quantitativa de avaliação, segundo a qual, o estudante tem que responder por todo o conteúdo visto.

Vivesse a ilusão conteúdista. Como se revisar a maior quantidade de conteúdos possível fosse o caminho certo para se ter muito conhecimento. O resultado é um mar de conteúdos fragmentados, misturados e caóticos diante dos olhos perdidos do estudante. Os melhores dentre eles, apenas conseguem memorizar muitos desses fragmentos. A superficialidade se torna uma regra: saber quase nada sobre muitas coisas. Saber muitas respostas é o fundamental: saber formular um problema é desnecessário.

Todas essas quantidades são apresentadas a partir de teorias pedagógicas. Os Projetos políticos pedagógicos das escolas explicitam sempre qual será o parâmetro desde o qual se imagina que a prática cotidiana funcionará. Em geral, é a oportunidade de citar Paulo Freire e Piaget e outros iluminados das teorias da aprendizagem. Na prática cotidiana, a aprendizagem é o único elemento que desaparece do foco. Como, quando, porque, quanto, para que os estudantes aprendem, é algo que fica apenas no papel. Em contrapartida o sistema se concentra efetivamente em controlar quantitativamente todo o processo. Quantos estudantes estão matriculados, quantos estão presentes, quantos capítulos dos livros de texto foram apresentados, quantas provas foram apresentadas, quantos estudantes tiveram notas suficientes para ser aprovados, quantas faltas de disciplina, quantos, quantos, quantos...

O estudante que deseja sobreviver a esse sistema precisa ser realista: ou elabora uma estratégia eficiente para conseguir os resultados necessários (obter notas e numero de presenças) ou será reprovado. Em geral eles se demonstram eficientes para isso: obtêm os resultados. Porém, se mantêm afastados de qualquer interesse específico sobre o que quer que seja. De fato, dedicar-se a aprender efetivamente algo, pode ser uma estratégia errada. A final de contas aprender profundamente algo implica um tipo de dedicação qualitativamente diferente: mais tempo dedicado ao mesmo conteúdo, mais do que muito tempo dedicado a muitos conteúdos. Mais aproximação com pessoas que conhecem esses conteúdos, do que muitos contatos com pessoas que conhecem pouco de diversos conteúdos. Deveríamos favorecer o mergulho profundo nos interesses do estudante contra o excesso superficial de conteúdos.

Um quarto elemento consiste no problema da disciplina. O sistema escolar vigente, público ou privado, gasta a parte mais importante de sua energia em processos burocráticos, como vimos, e o resto na necessidade de controlar, uniformizar o comportamento dos estudantes. Que sigam a normas, que respeitem as regras, que cumpram as ordens, que façam o que é devido. A escola ideal é silenciosa e estática. A escola real é um campo de batalha, tal como demonstram as pesquisas sobre violência nas escolas. Todos sofrem, estudantes e professores. Todos são vitimas e vitimários. Um circulo vicioso de violências permeia o dia a dia das escolas que, na tentativa de enfrentar o problema, usam os recursos que possuem contratando guardas, sistemas fechados de televisão para vigiar centímetro a centímetro os estudantes e também os professores, e na maioria dos casos aplicando penalidades que chegam até a exclusão da escola.

Enquanto a energia se evapora cuidando do controle comportamental, nada se faz para oferecer ao estudante elementos que lhe permitam adquirir disciplina epistemológica. Como se joga o jogo do conhecimento? Quais os elementos práticos que lhe permitiriam a um estudante ser pertinente e consistente na lida com os elementos que os diversos tipos de conhecimento lhe oferecem? Como participar das comunidades que produzem esses conhecimentos, como acessar esses campos sociais de discussão e experimentação? Como aplicar o que se aprende no contexto social, histórico, geográfico? Como fazer escolhas epistemológicas e ser rigoroso diante das exigências dessas escolhas? Isso é disciplina. O estudante se torna disciplinado quando passa a ser um jogador pertinente do jogo do conhecimento. As escolas não se aproximam desse jogo, nem os professores sabem jogá-lo.

A escola nesses moldes está na contramão da história. Vivemos uma ampla e profunda revolução no processo, nos modos, nos ritmos e nos sentidos da produção de conhecimento. Se produz muito conhecimento em todas as áreas em todo o mundo. Este conhecimento cada vez mais, permeia todos os processos políticos, econômicos, estéticos e sociais. A escola tal como está desenhada, se mantêm completamente reacionária a essa revolução. É uma instituição que luta para manter-se impermeável. Porém, assim mantém um hiato perigoso entre instituição e conhecimento.

Já que se produz tanto conhecimento, já que se usa tanto conhecimento, a escola deveria mergulhar profundamente nessa onda. Seu objetivo fundamental deveria ser o estabelecimento de estratégias de aproximação entre o estudante e o mundo do conhecimento. Esse deveria ser o foco da disciplina escolar. Porém, seria necessário derrubar os muros da escola para isso, acabar com a autoridade do professor, com o modelo de aula, com a grade curricular, com todas as formas de controle...em fim, teríamos que diluir a escola, torná-la um fluxo e não uma instituição.

Especialmente num ambiente histórico permeado por possibilidades tecnológicas como as que dispomos hoje em dia. A grande barreira histórica, que consistia no acesso aos conteúdos, foi derrubada. O muro de Berlim do conhecimento foi derrubado com a invenção e popularização da internet. Com a efervescência das redes sociais hoje é possível compartilhar o processo de produção de conteúdo em tempo real. Grátis!!!!!

Mais do que acesso as escolas precisamos garantir o direito à conectividade. Mais do que concentrar o processo de aprendizagem dentro dos muros de instituições escolares, precisamos garantir que todo lar, que toda rua, que toda praça seja um espaço de aprendizagem. Hoje isso é possível para os ricos. Porém, mesmo eles vivem processos de escolarização que apenas se diferenciam da escolarização dos pobre, no luxo das instalações e recursos e no excesso quantitativo. Más sabemos que é uma questão de foco das políticas públicas: elas devem garantir o acesso. Assim como ter eletricidade, aqueduto e esgoto é um patamar mínimo de civilização, ter acesso a internet de qualidade também.

Sem necessidade de fazer uma apologia das novas tecnologias, é possível afirmar que elas desconcentram e democratizam os conteúdos e possibilitam as relações. É urgente uma geração de políticas públicas que aproxime a população dos produtores de conhecimento através das redes virtuais. Essas iniciativas não devem ser apenas governamentais, mais também privadas.

O principio fundamental é reconhecer que o conhecimento circula hoje por todos os cantos da sociedade. Que é possível disponibilizá-lo em qualquer lugar da cidade e do campo. Que a partir desse principio é possível tornar o mundo que está aí, um grande cenário de trocas entre produtores de conhecimento e aprendizes. Precisamos entender o mundo como uma escola e cada ser humano como um potencial aprendiz e professor. Derrubar a instituição escolar, implica derrubar os muros que excluem. A escola atual reduz o mundo ao seu tamanho quando a escola, ao contrario, deveria ser do tamanho do mundo.

Um comentário:

  1. ola Edilberto e Tatiana,

    muito bom esse texto! acabei de conhecer o blog e vou seguir lendo-o...
    ha 4 anos vivemos um rico processo de desescolarização com nossos tres filhos, aqui em casa.
    tambem mantemos grupo de estudo (entre pais e educadores) e encontros periodicos abertos ao publico.
    grata por compartilhar o pensamento e a experiencia de voces.
    eu mantenho um blog http://anathomaz.blogspot.com onde compartilho um pouco de nossas experiencias tambem.
    abraço
    ana

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