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É a escola a única instância educadora na sociedade contemporânea? É legítimo impor a toda a sociedade um único modelo educacional? Em pleno século XXI, é impossível pensar alternativas sérias ao modelo escolar? O que estão fazendo aqueles que tiveram a coragem de educar seus filhos fora da escola? Como pensar e implementar um processo sustentável de educação fora da escola?

Estas e muitas outras perguntas tem neste blog um espaço para construir respostas. Educar os filhos na sociedade do conhecimento é um desafio que supera de longe o modelo escolar...é urgente dedicar-nos coletivamente a consolidar essas alternativas.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O mito do currículo escolar e como acabar com ele

O paradigma escolar se fundamenta atualmente na revisão de conteúdos. Os debates ao respeito se dividem em dois times: uns que defendem a quantidade máxima de conteúdo revisado e outros que, defendem a qualidade do conteúdo revisado. Ou, naqueles que defendem um máximo de conteúdo a memorizar e aqueles de defendem um mínimo de conteúdo a aprender.

Todas essas equações dão no mesmo "beco sem saída": a revisão de conteúdo, a eterna discussão sobre o currículo. E na medida que a discussão se torna cada vez mais complexa, ganham espaço os especialistas em currículo, que conseguiram ao longo de décadas tornar escuro o terreno sobre o qual discutir, decidir e vivenciar a educação dos nossos filhos. Eles se tornaram tão absolutamente necessários que sem eles nenhuma instituição consegue dar um passo à frente. Eles tem que ter especialização, mestrado ou doutorado, e entre mais elevada é sua patente, mais escuros são na elaboração dos currículos escolares. Isto ao ponto de ter construído um consenso: é necessário ter um currículo, se não não tem escola nem educação. Assim, o currículo escolar alcançou o caráter de mito.

Mas...cabe perguntar-se algumas coisas simples a esse respeito para ver se toda essa mistificação tem sustento mesmo ou não passa de um mero fantasma epistemológico. O que é um currículo? Para que serve? Como são feitos?

Um currículo é uma redução quantitativa e qualitativa de conteúdos diante da inesgotável quantidade de elementos existentes na história do conhecimento. Serve para selecionar o que, no critério do especialista em currículo, é indispensável saber de toda essa história. São elaborados a partir de um processo de seleção arbitrária de conteúdos que, dependendo de alguns critérios estabelecidos, elimina ou escolhe determinados itens dentro de um panorama vasto de possibilidades. Em geral, esses critérios obedecem a razões puramente ideológicas que embutem preconceitos políticos, raciais, de classe social, religiosos e até sexuais.
Por tanto o currículo tem sim uma intencionalidade: a de configurar na cabeça do estudante e do professor uma determinada visão de mundo. Isto é uma ideologia, um tipo de ordem.

Nada mais perigoso e poderoso. Um pequeno grupo de especialistas tem em suas mãos o poder de decidir o que uma geração inteira vai pensar, legitimar e entender a respeito do mundo em que vive. Daí que tenhamos os especialistas curriculares da direita e da esquerda e toda a sua guerra fria pairando sobre milhões de cabeças de estudantes e professores. Alguns exemplos disso: Toda a discussão sobre criacionismo ou evolucionismo. Toda a briga sobre o tipo de elementos dos cursos de história. A questão de tornar o ensino médio tecnológico, científico ou humanista. As discussões sobre educação sexual. A defesa da ciência em detrimento da arte ou da filosofia, o da mitologia. Inclusive as diferencias entre ensino público e privado passam por aqui.

Se o currículo é apenas uma luta ideológica, então a discussão, legalização, implementação e vigilância nos oculta, como ocorre com todas as posturas ideológicas, algo. O que? Nos oculta o verdadeiro acesso ao mundo do conhecimento. Ao que parece às elites interessa agora que todo mundo esteja na escola, mais não para encontrar-se com o conhecimento e tornar-se competentes nos processos criativos de todos os aspectos possíveis desse mundo, mais apenas para manter o controle social sobre as novas gerações, para socializar-los, para reproduzir as mesmas estruturas sociais excludentes. Para reproduzir o modelo de mundo que eles entendem ser bom. Para conservar como estão as práticas políticas, econômicas e sociais. E conseguem isso muito bem. Vemos como as novas gerações, ao passo que se mantém bastante afastadas do conhecimento ( inclusive rejeitando-o abertamente) lutam incessantemente por uma vaga no vestibular, por um concurso público e mais nada.

Por tanto, a elemento central de todo isto é abrir o fechar o acesso ao mundo do conhecimento. Penso que o processo de desescolarização deve ter esta como sua principal bandeira. Entendamos a expressão "mundo do conhecimento" como o conjunto de todos os saberes que o ser humano já produziu ao longo de toda sua história. Para enxergar isto é necessário usar os óculos da transdisciplinariedade. Assim, será possível observar que magia, mitologia, filosofia, teologia, ciência, arte e saberes tradicionais, compõem a enorme paisagem do conhecimento humano. É isso, é muita coisa. E todos os dias continua sendo produzido material novo em cada uma dessas frentes. É abrumador em termos de quantidade, qualidade, complexidade. Reduzí-lo a um currículo é um ato de violência. Basicamente porque significa retirar a maior parte de elementos que configuram esse universo e apresentar a colcha de retalhos resultante como um todo importante. Isto como se um recorte das partes pudesse, em alguma hipótese, ser mais e melhor que o todo.

A esta altura da história humana é impossível resumir a história do conhecimento e pela sua dinâmica, o será cada vez menos. O que fazer? Não adianta continuar brincando de fazer novos e melhores recortes. Temos que abandonar o paradigma da revisão de conteúdos. Toda revisão fica muito aquém do que é revisado quando este todo aumenta de tamanho a cada segundo num mundo como o nosso.

Um novo paradigma, ao abandonar o revisionismo conteudista deve concentrar-se no aprendizado das competências necessárias para poder participar ativamente da dinâmica de produção de conhecimento. De todos os tipos de conhecimento. Neste paradigma o importante não é memorizar dados. É aprender como se produzem esses dados. Não é saber de cor os nomes de alguns cientistas, é saber como eles dialogavam entre si. Não é repetir conceitos, teorias, fórmulas, mais entender quais foram os processos sociais, históricos e epistemológicos que fizeram possível que estes conceitos se afirmaram na história do conhecimento. Não é repetir incansávelmente conteúdos, mais entender os contextos históricos em que surgiram e o contexto histórico em que novas demandas de conhecimento são feitas. Não é a repetição de equações mas a aprendizagem de um linguajar especifíco, a linguagem de quem conhece algo.

Um novo paradigma deve concentrar-se em capacitar os estudantes e professores para fazer parte ativa do jogo do conhecimento. Uns e outros devem ser bons jogadores nesse "campo". Metaforicamente falando: não adianta de nada fazer que os estudantes aprendam de cor os nomes dos jogadores de todas as seleções de futebol, nem que saibam os nomes de todas as manobras de cada jogador. O que adianta é que sejam eles próprios bons jogadores de futebol. O mesmo com o conhecimento: um bom jogador no campo epistemológico não se preocupa com a quantidade de dados memorizados, mas com sua perícia na aplicação das regras do jogo do campo no qual se produz conhecimento.

Isso não se resolve com um currículo, mas com a construção de mapas mentais e competências que permitam ao aprendiz saber onde está localizado, com quem está conversando no mundo do conhecimento, quais são os problemas que cada área esta desvendando e quais são os instrumentos e processos com os quais isso está sendo feito. Não adianta ao marinheiro saber quantos barcos tem no mar. Adianta conhecer os instrumentos de navegação e as regras que todos os marinheiros utilizam.

Nesse sentido o processo de desescolarização deve ter como um desafio, colocar o estudante frente a produtores competentes de conhecimento. Não pela quantidade, mais pela qualidade. Um bom mestre vale mais do que anos e anos de professores sem esses instrumentos de navegação, sem essas competências. Mais que preocupar-se com a instituição e todo que ela implica, é necessário ocupar-se da relação entre o estudante e o mestre. É dessa relação que pode surgir o novo mestre. A instituição é em si mesma incapaz de levar um estudante até tais competências. Os poucos que conseguem transformar-se em produtores de conhecimento o fizeram dada a relação pessoal estabelecida com um mestre. Não com uma instituição. Esta todo que podia oferecer era um currículo. O mestre oferece seu conhecimento, sua experiência, seu modo de fazer, suas relações com o mundo do conhecimento. A instituição oferece livros de texto. O mestre oferece vivências, experiências, compartilhamentos, diálogo, correções, críticas efetivas.

Libertemos os mestres e os estudantes das prisões do currículo e das instituições e deixemos acontecer esse fenômeno misterioso da aprendizagem acontecer. Vejamos como ao deixar em contato um mestre com um leigo, no final teremos dois mestres. Se isso não ocorreu, não houve aprendizagem.




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