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É a escola a única instância educadora na sociedade contemporânea? É legítimo impor a toda a sociedade um único modelo educacional? Em pleno século XXI, é impossível pensar alternativas sérias ao modelo escolar? O que estão fazendo aqueles que tiveram a coragem de educar seus filhos fora da escola? Como pensar e implementar um processo sustentável de educação fora da escola?

Estas e muitas outras perguntas tem neste blog um espaço para construir respostas. Educar os filhos na sociedade do conhecimento é um desafio que supera de longe o modelo escolar...é urgente dedicar-nos coletivamente a consolidar essas alternativas.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Livros didáticos, obsolescência e capitalismo

 Sua influência na educação de crianças e adolescentes? 








As seguintes são cenas do cotidiano de milhões de famílias.  Uma criança sentada frente a uma enorme pilha de livros didáticos. Uma mãe recomendando ao filho não rabiscar no livro didático que ela espera poder vender para outra criança no ano seguinte. Uma mãe ou um pai, tentando vender os livros didáticos que seu filho utilizou no ano anterior. A visão de um sebo no qual montanhas de livros didáticos se acumulam no meio à poeira. Uma pilha de livros didáticos usados em algum canto da casa.

Outras cenas acompanham as anteriores: crianças chorando frente a livros didáticos.  Crianças tentando memorizar o conteúdo entediante de livros didáticos. Crianças odiando livros didáticos.  Crianças procurando entender o conteúdo fragmentado, confuso, desconexo dos livros didáticos. E uma mais: pais comprando e pagando caro por  pilhas de livros didáticos.

Milhões de famílias....muuuitos milhões de livros didáticos todo ano.  A estes se somam outros milhões de textos que são resumos de livros clássicos. O resumo do Don Quixote, o resumo do Alienista, o resumo do Anjo das Ondas, o resumo da Ilíada, resumos, resumos, resumos....milhões de grandes obras convertidas em resumos. Milhões deles são depositados em sebos.

A indústria editorial, que pena pela lentidão com que cresce a demanda de livros...cresceu sobre a enorme demanda de livros didáticos e textos literários adaptados para a escola.  A diferença do mercado de livros, no qual o leitor decide que livro quer, quando o quer, porque o quer, o que faz dele um ator ativo, movido pelo seu interesse, o mercado do livro didático se funda sobre uma demanda de caráter passivo. Nem o comprador, nem o leitor, estão interessados neles. São obrigados a comprá-los. São milhões de pilhas de livros de caráter obrigatório demandados pelas escolas.

As engrenagens dessa indústria estão fundadas sobre os mesmos princípios da produção de objetos de consumo. Para tornar esses empreendimentos rentáveis, é necessário que o consumidor repita infinitamente o ato de compra.  Para tanto, o produto deve ser essencialmente descartável. Se fosse reutilizável geraria prejuízo. Como os eletrodomésticos, os carros, as roupas e, praticamente todos os bens de consumo, os livros didáticos são desenhados, pensados, planejados para serem usados e descartados rapidamente. Esse é o princípio fundamental da indústria contemporânea: a obsolescência. Um produto obsolescente é aquele programado para não ser reutilizado.

Os livros foram, pela sua natureza, obras para a eternidade. Embora sofressem o impacto das traduções, livros como a Ilíada, a Odisséia, a Bíblia, as Mil e uma Noites, Sonho de uma Noite de Verão, A República, A Utopia, etc, são obras que podem ficar uma eternidade esperando que um novo leitor, mesmo de gerações diferentes, se deleite com ele e cresça. 

O axioma da obsolescência introduzido na produção industrial de maneira a revitalizar um capitalismo em plena crise, durante os anos 30, finalmente alcançou a  indústria editorial. Hoje, a maior parte do que se produz editorialmente é descartável. A maior parte dos títulos é para o descarte. Apenas uma pequena parte de uma livraria de fato, oferece livros que valha a pena  ler, reler, emprestar e pedir de volta.

Dentre as montanhas de material publicado descartável, se encontram todos os livros didáticos. É com eles que o sistema escolar pretende educar milhões de crianças.  Parece injusto e exagerado disser isso. Mas, vamos aproximar-nos deles e veremos como o negócio funciona:

* Um livro didático está feito para não ser reutilizado. Para evitar sua reutilização, eles são sistematicamente “atualizados”. A cada ano, o mesmo livro, ganha uma nova edição. Assim, a indústria editorial introduz pequeníssimas mudanças em cada texto (troca um titulo, troca a ordem dos   capítulos, muda de cores aqui e ali) e assim,  se decreta a descartabilidade da edição anterior.

* Da mesma maneira que na industria farmacêutica, onde um exército de representantes visita os médicos oferecendo amostras grátis de novos produtos, na indústria editorial os professores são assediados a cada ano com amostras gratuitas de novas versões e novos títulos.
 
* O critério de mudança entre um texto didático e outro não obedece à necessidade de oferecer melhores textos aos estudantes, mais a necessidade de “atualizar”os textos e isso significa, apenas comprar a nova edição.

* A nova edição em geral é, se analisada de acordo com seu conteúdo, mais ou menos a mesma que as anteriores, a grande diferença está no desenho. As últimas são desenhadas de maneira a chamar a atenção do consumidor adolescente.

O que dizer dos livros “resumo”? É melhor não perder tempo nisso. Eles, simplesmente não resistem qualquer critica. São isso: descartáveis.

Mas da mesma maneira que fármacos, os livros didáticos e os livros resumo tem efeitos colaterais que muitas vezes são piores que a doença que pretendiam combater.

Os professores, se limitam a  esse tipo de texto. Fazem do planejamento anual apenas um cola e copia dos capítulos do livro didático que escolheram. Suas aulas são ou um seguimento página a página do livro ou um salteado indecifrável. É o que entendem por coerência e consistência.

Mas é justamente por fazer isso sistematicamente que o resultado geral é da mesma natureza que o material utilizado. Os estudantes aprendem o exercício da descartabilidade de conteúdos. Se concentram naquilo que o professor indica que vai cair na prova. E depois esquecem tudo. Esquecer é o ato do descarte.

A relação que se estabelece com um livro, é significativa, pelo fato de que o leitor será para sempre transformado pelo ato da leitura. Cada livro adquirido se torna um tesouro que poderá ser acessado cada vez que o espírito do leitor assim precisar. Estará ali, nesse lugar sagrado que costumamos chamar biblioteca.  É o lugar que costumamos reservar aos tesouros que escolhemos e com os quais nos acompanhamos ao longo da jornada.  Com os livros didáticos, não. Eles nunca farão parte das referencias do leitor. Mal se lembrará do titulo.  Nunca regressará a eles. Os dará de presente, tentará vendê-los, os jogará no lixo ou os guardará numa caixa escondida no porão. 

As famílias reservam, lamentavelmente, pouco dinheiro para comprar livros. E a maior parte desse dinheiro se vai em comprar livros didáticos. Isso contribui para o fato de que poucas famílias conseguem reunir livros suficientes para poder dizer que tem em casa uma biblioteca.

Outro efeito colateral do uso de livros didáticos é que eles conseguem convencer o jovem leitor da desnecessidade de todo e qualquer livro.  A escola passa essa mensagem. Ali, devem encontrar tudo o que é necessário. Tudo que precisam para passar no vestibular. Argumentos como esses destroem qualquer chance de estabelecimento de uma relação sadia com os livros.

O diálogo com diversos autores, necessário na construção do conhecimento se torna impossível. O estudante não consegue perceber que tudo na história do conhecimento foi construído num processo de dialogo entre autores. Os livros didáticos anulam o diálogo. E ao fazer isso, impedem a aproximação do estudante com os autores.

Dificilmente um estudante conseguirá apropriar-se da linguagem típica de um campo de conhecimento.  No esforço por memorizar alguns dados soltos no livro, deixará passar o que é mais importante, o linguajar  dos nativos desse campo, os autores. E terá já adquirido a pressa por abandonar aquilo que entende passageiro e inútil na sua vida.

A obsolescência dos livros didáticos termina por contaminar toda a relação com o conhecimento que deveria nascer justamente nos primeiros anos de  estudo.  A pesar disso o sistema educacional consegue gerar todos os dados de que precisa para justificar sua existência: notas, presenças, diários, relatórios.  A pesar disso a industria consegue seus objetivos empresariais: aumenta suas vendas, alcança seus lucros. 

Perde o País, que recebe milhões de analfabetos funcionais todo ano. Perde o estudante que não mais conseguirá ver  sua vida numa perspectiva iluminada pelos bons livros. Perde nossa história, que verá passar outra geração sem o contato profundo e benéfico dos livros eternos, aqueles em que gerações e gerações de pensadores, artistas, cientistas, criadores, depositaram o melhor dos seus esforços, o conhecimento.

Vale lembrar que na sociedade capitalista contemporânea, tudo que é descartável, vira lixo. 

2 comentários:

  1. Excelente artigo. Há ainda um outro efeito maléfico dessa dinâmica: escasseia a produção e comercialização dos bons livros, aqueles que realmente contribuem para a formação dos nossos filhos, que trazem o conhecimento de forma integral e prazeirosa. Vocês já ouviram falar de Charlotte Mason e sua abordagem de ensino através de "whole books"?

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  2. Prezada Juliana. Obrigado pela indicação do método de Charlotte mason. De fato não o conhecíamos. É interessante como a prática da desescolarização nos leva à mesma questão: que livros ler? E claro, depois de "descartar os livros descartáveis, os didáticos, percebemos que uma criança deve ler poucos livros, mas bons livros, livros clássicos, livros que tem demonstrado ao longo do tempo que fazem parte do legado histórico da humanidade em qualquer tipo de conhecimento. O Rafael, por exemplo, se concentrou durante uns bons 7 meses na leitura da Ilíada de Homero. Isso lhe significou a leitura de outros textos de maneira a dar conta de entender o livro. Hoje ele percebe a importância de viver esse desafio, o desafio de ler integralmente um livro clássico.

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